Vocês podem estar imaginando a resposta: algum novo cético com contra-evidências arrebatadoras? O saudoso e querido Padre Quevedo? O Papa?
Nenhum desses. Uma discussão recente no Facebook me fez lembrar, de uma perspectiva histórica recente, como a indústria espírita – mais uma jabuticaba brasileira – alterou sua abordagem em tempos recentes. E isso não se deve a nenhum dos fatores acima ou qualquer coisa inusitada. É simplesmente devido ao avanço das tecnologias de imagem.
Qualquer um que frequente as redes sociais, especialmente o TikTok ou o Youtube, poderá ver pequenas histórias de terror de meter medo, normalmente produzidas por adolescentes com celulares e um editor de vídeo. Coisas de um realismo assustador, tanto que, especialmente no TikTok, usuários mal-intencionados, contando com a nossa capacidade para crendices, lançam os vídeos como se fosse observações com intenção realista, com o fito de assustar de verdade os incautos.
Mas meu ponto é (ponto que gostaria e poderia desenvolver para muito além de uma postagem de blog, mas sem tempo no momento, que espero vir algum dia): quem viveu os anos 90 no Brasil e assistia TV certamente compartilha comigo algumas memórias, que é a de alguns programas com imagens alegadamente paranormais, fantasmas que aparecem em fotos, sombras em filmagens etc. Tudo normalmente interpretado, é claro, como manifestação de gente morta. Aí que entra o padre Quevedo ou algum cético de viés naturalista tentando desmentir a coisa toda, muitas vezes sem sucesso e sem contar com a simpatia das plateias desses programas. Confesso que me recordo de tudo isso com alguma nostalgia.
Olhando essas imagens hoje em dia, há de fato algo de assustador nelas: sua porquíssima e baixíssima qualidade, frutos da qualidade tecnológica da época. Só podiam ser consideradas assustadoras e convincentes na era analógica. E hoje em dia nem o mais convicto atuante da indústria espírita vai por esse caminho para evidenciar supostas “aparições”, “materializações ectoplasmáticas” etc, até mesmo porque se forem da mesma qualidade de antes, perderão para adolescentes com celulares e se as imagens forem boas, também podem ser produto de burla (tal como eram antes, mas agora com menos gente disposta a se convencer e assustar com aquilo).
Tomemos alguns exemplos:
Vocês conseguem imaginar alguém assustado ou convencido da realidade do universo “espiritual” a partir de imagens tão evidentemente e assustadoramente falsas? Pois é, acho que ninguém consegue, por isso que, apesar de continuar debatendo com espíritas de tempos em tempos, nunca mais os vi usar nem tais imagens e tampouco imagens novas como evidências de suas crenças que, diga-se de passagem, alegam ser científicas (como produto de época francês, o espiritismo surge sob a égide da física newtoniana e da atmosfera do positivismo, sofrendo da necessidade da chancela “científica”). Tais imagens ainda nos legam um bônus (que não é o objeto dessa postagem): é possível se engajar nisso sem tomar parte na fraude? Que é fraude é nítido para qualquer portador de smartphone em 2023, o que não era o caso quando as imagens foram produzidas. Mas permanece no ar se os engajados nisso agiram todos por má-fé ou é possível escapar como tendo sido enganados também.
Fato é que a tecnologia digital de imagem certamente moveu cartas do baralho da indústria espírita, que teve que abandonar tal abordagem e partir para outras. Isso posto, quero aproveitar para comentar alguns outros assuntos correlatos ao espiritismo e pertinentes ao nosso confuso debate nacional sobre religiosidade:
- espíritas se consideram cristãos.
Eu considero perfeitamente possível que espítitas se considerem cristãos e que o espiritismo se considere a versão final do cristianismo. Só o que não dá pra entender é alguém considerar que o cristianismo – de qualquer matriz – pode ser compatível com o espiritismo.
Essa é uma questão que costuma deixar os espíritas irritados e costuma ser uma questão inegociável, eles não admitem que simplesmente professam uma religião (quando admitem que o espiritismo é uma religião) que não seja cristã ou que, no máximo, possa ser considerada uma seita (na definição técnica do termo) cristã.
Considero extremamente curioso que nenhum espírita seja capaz de citar qualquer teólogo cristão, católico ou protestante, que veja essa compatibilidade ou continuidade entre cristianismo e espiritismo. Só os que veem, para surpresa de ninguém, são… os próprios espíritas! Caso houvesse essa compatibilidade toda, como explicar que esse fato tenha escapado a todo teólogo, intelectual e estudioso moderno do cristianismo? É de um realismo superior ao do rei de assustar.
- espíritas se consideram cristãos porque praticam a ética cristã.
Seguir a ética cristã sem o arcabouço doutrinário do cristianismo – e nesse caso não tem contenda entre católico e protestante – é isso mesmo, é ser “boa gente”, como o padre Quevedo dizia que Chico Xavier era. Há até os “ateus por Jesus”, gente boa que segue a ética cristã, faz caridade, mas não aceita as verdades metafísicas e doutrinais que sustentam essa ética. Compreensível, pois é uma ética tão bela, coerente e funcional que todo mundo quer uma mordida no biscoito, mesmo sem ter parte, até ateus. Mas aí é aquele dilema que o C. S. Lewis explicou tão bem: sem o pacote completo, “o cara” que saiu por aí dizendo que era filho de Deus vira um louco.
Boa parte da necessidade tão profunda de se considerar cristão vem daí. E eu acho isso respeitável. Porém, não há como aceitar isso. Como o espiritismo pode ser o “cristianismo primitivo” (como alegam espíritas mais letrados) e os únicos a perceberem isso serem… ehrr, os espíritas? A Igreja católica condena as práticas, os protestantes então nem é preciso dizer, fazem isso com uma vociferação e tom que até acho agressivo, se pularmos para os teólogos ao longo dos séculos, nenhum deles viu essa compatibilidade (na verdade pelo contrário, o que se consegue ver é claramente o espiritismo como o zeitgeist da sua era) ou identidade, para acreditar nisso seria preciso admitir que todos os católicos e protestantes até hoje erraram sobre o cerne de suas doutrinas e só os espíritas acertaram. Não quero nem imaginar o peso dessa afirmação.
Isso posto, destaco que sempre mantive boa relação com amigos espíritas, costumam realmente ser pessoas boas, que praticam boas ações e compreensivas no trato com os outros. A coisa costuma ficar mais desagradável apenas quanto são postos diante de fatos como os citados acima: a atmosfera de fraude e golpe em que suas afirmações são feitas, as incoerências doutrinárias entre suas crenças e qualquer doutrina cristã minimamente séria, a absurdidade da alegação de que o espiritismo seria uma “ciência” etc.
Alguns espíritas que toparem com esse texto certamente se sentirão incomodados com a menção ao Padre Quevedo e isso revela um ponto que merece um destaque final: existem sim outros estudiosos, católicos como o padre Quevedo ou não-católicos, como René Guenon, que se debruçaram criticamente sobre o espiritismo, mas de fato eles não existem aos borbotões.
Mas calma lá, não porque o espiritismo é intelectualmente imbatível, na verdade, até pelo contrário, é porque ele só tem relevância no ambiente sociorreligioso brasileiro, sendo o Brasil virtualmente o único país em que vingou, estando morto na França de Kardec, por exemplo. Por isso que, realmente, não existem dúzias de análises e refutações. Aliás, na obra de Guenon intitulada O Erro Espírita, há até um esforço sutilmente cômico em definir “espírita” e “espiritismo”, digo cômigo porque para ouvidos não-brasileiros há uma dificuldade enorme com o que exatamente se quer dizer com isso. Não se pode esperar grandes esforços de refutação de algo que não é relevante e que mal é nomeado em outros idiomas. Guenon fez esse esforço devido a seus estudos sobre religião, configurando uma exceção da exceção.
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