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Filosofia

Liberalismo, libertarianismo, conservadorismo e a confusão brasileira

17 de janeiro de 2021
Liberalismo, libertarianismo, conservadorismo e a confusão brasileira
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Texto utilizado como base para o podcast OliverTalk.

Você, amigo ouvinte de mais um OliverTalk, agradecemos sua presença, sua companhia e sempre fica o alerta: sim, estamos no iTunes, no Google Podcast, no Spotfy, no Senso Incomum e em praticamente todos os meios de divulgação de podcasts possíveis e imagináveis, sempre à sua disposição. Agradeço uma vez mais ao Luciano Oliveira, pela confiança e espaço cedido no OliverTalk para mais uma análise sobre nosso atual estado de coisas, e, é claro, a você.

Eu suponho que você queira saber, mais do que nunca, quais as diferenças entre liberais, libertários e conservadores. Quando estes brigam e quando engrossam as mesmas fileiras de combate. Antes disso, um pouco de perspectiva pessoal, com a qual tenho certeza que muitos se identificam.

Hoje, como um conservador consolidado, continuo a não ver liberais e libertários necessariamente como inimigos. Por algumas razões básicas: temos consideráveis inimigos em comum (a estatolatria, o comunismo etc.), também compartilhamos de alguns ideais: uma simpatia maior ou menos pelo capitalismo e pela economia de mercado, a crença da liberdade de expressão, que o indivíduo deve ser, em grande parte das vezes, respeitado etc. Porém, tendo a considerar hoje que a recíproca não é tão verdadeira, se não vejo liberais e libertários como inimigos, uma parcela considerável de liberais e libertários tende a ver conservadores como inimigos — como estatistas, como fiscais de moralidade etc. Mas considero, pessoalmente, isso como um problema de ordem menor.

Aplicando esse quadro à realidade brasileira, é possível entender por que liberais e conservadores começaram a se espinafrar publicamente. Quanto o PT estava lá, era questão de combater o inimigo comum — o esquerdismo estatólatra, muitas vezes em sua face comunista. Uma vez instalado um governo conservador, o buraco ficou mais embaixo. Cada um foi para seu lado. Já tínhamos tido uma boa prévia disso tanto com a eleição de Donald Trump quanto com seu programa econômico. Liberais e libertários tendem — e aqui enfatizo o tendem, é uma generalização necessária para dar sentido à fala, mas é evidente que existem exceções — a ser doutrinários (tipo como quando o PCO faz uma postagem defendendo porte de armas, não é por razões libertárias, mas por corolário da doutrina da revolução armada). Isto é, querem agir conforme reza sua doutrina, então são incapazes de compreender o “protecionismo” econômico de Trump. Pra eles protecionismo é ruim e pronto, sem exceção, sem relativização, nem como retaliação aos profundos protecionismos da União Europeia e da China. Logo Trump não é liberal, logo precisa ser criticado e jogado fora — pelo menos para a raia-miúda que segue religiosamente a doutrina.

Se você conhece grupos que reunem liberais ou libertários então você sabe do que estou falando. Exemplo: o tratamento dado pelos neófitos ao chamando “princípio da não-agressão” (a ideia de que você nunca pode iniciar a agressão contra outrem, é lícito agredir apenas em retaliação). Os fóruns desses grupos estão recheados de posts como “fazer tal coisa fere o PNA?”. É o exemplo mais prático do que apontei: os caras pegam a doutrina e querem reduzir toda a variedade e multiplicidade de fenômenos que se dão na realidade a um único princípio. Se ferir o PNA não pode, se não ferir pode. Essa é uma tendência que se aplica em maior medida a libertários.

Liberais costumam se apegar a outras normas de conduta burguesas e esperam que esquerdistas sigam as suas regras do jogo. Liberais famosos de internet já disseram abertamente que seu compromisso não é com nenhum tipo de anti-esquerdismo. Pelo contrário, pois para diversos liberais não há muita divergência de agenda com a esquerda autointitulada “progressista”. Especialmente quando falamos da agenda moral. Liberais saem na frente para defender, por exemplo, o direito à liberdade de expressão de esquerdistas — ora porque doutrinariamente querem defender o princípio, ora para sinalizar virtude aos compadres esquerdistas, na esperança de fazer parte do clube ou de morrer por último, mesmo quando sabem que esquerdistas não corresponderão a gentileza na mesma medida na primeira oportunidade que existir. Ou seja, muitos liberais ou os intitulados “left libertarians” ou left-libs, preferem o falso afago da esquerda autoritária em nome de apreço a princípios doutrinários abstratos do que eventuais acenos sinceros de conservadores.

Não posso negar que muitos conservadores caem nas cantilenas liberais. Eu mesmo já fui simpático à alcunha “liberal-conservador”, atacada primariamente por liberais, que preferem vínculo com a esquerda do que com conservadores. Por isso tenho falado na necessidade urgente de um “conservadorismo não-burguês”, conforme já rezava o autor russo Nikolai Berdiaev em seu “Uma Nova Idade Média”.

Conforme dizia Lênin, “A burguesia tece a corda com que será enforcada”.

Muitas vezes nós, conservadores, por tomarmos uma clara, evidende e antimarxista postura — única possível, caímos nas esparrelas marxistas sem perceber. Por exemplo: tomar valores burgueses como bons (às vezes até sacrossantos) ou como essencialmente nossos, apenas porque o marxismo é um ataque à classe burguesa. “Se os marxistas são contra, deve ser coisa boa, então é coisa nossa”, pensam muitos conservadores.

Contudo, não é bem assim. O formalismo burguês, o apego a regras de conduta supostamente invioláveis, que logo seja possível serão utilizadas contra os burgueses pelo seu inimigo, é excelente exemplo disso. É o clássico dilema do pacifista num mundo belicoso: quer ser pacifista, seja, os tanques inimigos sequer vão passar por cima de você por último. Não adianta se apegar a regras, por mais nobres que sejam, se os que estão ao seu lado não operam por elas.

Querem exemplos disso regados a humor? Vejam boa parte das publicações da página Todo Dia Um Liberal Passando Vergonha.

Como dizia Nikolai Berdiaev acerca do espírito burguês:

“(…) um estado espiritual, uma orientação da alma para uma certa direção, um gênero peculiar de auto-consciência”.

“(…) é algo espiritual, ontológico”.

“(…) esse espírito burguês amadureceu e subjugou a sociedade e a cultura”.

“(…) A sede de poder, de bem-estar e de riqueza triunfa sobre o anseio de santidade e genialidade. As realizações mais elevadas do espírito pertencem ao passado, a espiritualidade encontra-se em declínio, e uma época de decadência espiritual traz consigo a ascensão da burguesia”.

“O burguês, mesmo quando é um ‘bom católico’, acredita somente neste mundo, naquilo que é conveniente e útil”.

“O burguês adora dar esmolas ‘nas sinagogas e nas ruas’ para ser ‘elogiado pelas pessoas’”. [Berdiaev prevendo a sinalização de virtude dos liberais].

“Há burgueses conservadores, tanto quanto os há revolucionários”.

“O burguês idolatra a vaidade e considera suas próprias ações divinas”.

“O burguês, outrora um mero tipo psicológico entre outros, é hoje o tipo social predominante”.

BERDIAEV, Nikolai. Uma nova Idade Média. Curitiba: ed. Arcadia, p. 183–197.

Esse é o espirito de um liberal, esse é o espírito de muitos conservadores, e por isso considero urgente um conservadorismo não-burguês.

No campo teórico, ainda é necessário dizer que liberalismo e libertarianismo são IDEOLOGIAS. Especialmente no sentido conferido ao termo pelo filósofo americano Russell Kirk apresentado em seu A Política da Prudência. São cosmovisões que preveem um ordenamento social perfeito ou quase perfeito se implantadas em sua totalidade. É provável que meus amigos liberais mais equilibrados fiquem bravos aqui e objetem que eles não são assim. Pode ser que não sejam, mas não estou falando de indivíduos, estou falando da ideologia que sustentam.

O liberalismo é uma ideologia moderna e burguesa que faz parte do mesmo panteão que todas as ideologias modernas e burguesas, incluindo o socialismo. É filha do iluminismo e promove o mesmo “desencantamento” do mundo que seus irmãos bastardos. Se o socialista fiel e doutrinário crê que com a abolição da propriedade privada e das classes sociais emergirá uma ordem social perfeita na História, o liberal igualmente fiel e doutrinário crê que com a manutenção da propriedade privada, o Estado limitado e uma economia de livre mercado, todos os problemas sociais serão resolvidos e daí emergirá uma ordem social virtualmente perfeita. É nesse sentido que socialismo e liberalismo são ideologias e ideologias irmãs, ainda que seja uma fraternidade à moda Caim e Abel. Essa é, de maneira pura e simples, a crítica que Eric Voegelin tece à modernidade e às ideologias — todas elas. Mundo desencantado, imanentismo e gnosticismo. Mundo desencantado porque não há compromisso com a existência de qualquer realidade além-destemundo (daí que o liberalismo se transfigure em libertarianismo, sua versão radical e em suas exposições mais histriônicas, tolere ou seja abertamente simpático a aberrações como legalização de todas as drogas, venda de órgãos ou de bebês; não há compromisso com qualquer moralidade transcendente e objetiva), imanentismo porque crê que tudo o que existe é o aqui e o agora e, nesse sentido, ou se crê na possibilidade de um ordenamento social perfeito DENTRO da História humana ou se cai no pessimismo niilista e gnóstico porque se vê como capaz e conhecedor da fórmula capaz de realizar esse ordenamento social paradisíaco.

Ao passo que, conservadores, como o mesmo Russell Kirk diz, não possuem uma ideologia. O conservadorismo não tem um manual que alega conhecer e então revelar a fórmula para instalar um paraíso terrestre. O conservador duvida dos planejamentos centrais, mas também da possibilidade de uma ordem mercadológica espontânea resolver não apenas todos os problemas humanos, mas até mesmo os problemas do mercado (que precisa ser guiado por “sentimentos morais”, como já dizia Adam Smith). A salvação deste mundo por ele mesmo é metafisicamente impossível para o conservador, ao passo que é a meta realizável de qualquer ideólogo — mesmo aqueles por quem podemos cultivar alguma simpatia esporádica.

Agora diga-se, toda essa discussão teórica embasada em autores ignora o caráter dos envolvidos. Pressupõe que todos são honestos, realmente são amigos de quem dizem ser amigos, suas atitudes de ontem, de antes, de hoje e do futuro são coerentes e racionalmente embasadas e não estão interessados em cargos, poder, desagradar os velhos patrões e agradar os novos.

E aí está boa parte do problema envolvendo liberais e conservadores apoiadores do governo. Muita gente esperava um emprego. Não veio. Muita gente esperava fazer parte dos conchavos. Também não veio.

Muita gente esperava — com facilidade — sublimar as influências do presidente e de seus filhos que os conduziram à vitória.

Outros já tinham a raiva perfeitamente alimentada porque esperavam os conchavos e os empregos para o caso das eleições de Geraldo Alckmin, Amoedo ou Meirelles. Porque no fundo, não exatamente de maneira surpreendente, um emprego e um contracheque gordo é tudo que importa para certas pessoas.

Se isso não explica todas as recentes guinadas e deserções de apoio ao governo Bolsonaro, certamente explica grande parte delas. Que venham de liberais ou de liberais-afetivos não é exatamente uma surpresa. Os doutrinários já rechaçavam Bolsonaro desde o princípio, preferindo seu voto em nanicos que apenas propalaram Fernando Haddad, quando muito votaram com nojinho, adotando a postura mais desagradável para o doutrinário de qualquer ideologia: ser estratégico. Aos demais não vale a pena gastar tanto latim, são apenas salafrários que mudam de ideia — liberais ou não — conforme o vento dos depósitos bancários aponta. Que fique a lição para os conservadores inocentes: o moto do “inimigo do meu inimigo é meu amigo” só funciona quando esse inimigo tem algum caráter.

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2 Replies to “Liberalismo, libertarianismo, conservadorismo e a confusão brasileira”

Felipe

Texto incrível! Parabéns, André…

Jorge

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