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Cultura

Apreendendo o transcendente com Jordan Peterson e Roger Scruton

12 de janeiro de 2021
Apreendendo o transcendente com Jordan Peterson e Roger Scruton
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Roger Scruton e Jordan Peterson se engajaram numa interessante conversa sobre o tema do transcendente na universidade de Cambridge, mais especificamente no departamento de estudos platônicos. Scruton é um filósofo inglês, além de músico e autor de romances, sabidamente conservador e já (felizmente) bastante conhecido no mercado de ideias brasileiro. Peterson é um psicólogo canadense que ganhou renome internacional por sua defesa da liberdade de expressão e contrariedade a um projeto de lei (C-16) que deseja regular o discurso dos indivíduos de forma que usem a “linguagem apropriada” para se referir a pessoas “transgênero”. Peterson se define como um liberal clássico.

Antes de traçar um breve resumo da conversa, um preâmbulo sobre os dois. Discorrer sobre o tema do “transcendente” parece tarefa para religiosos – ou pelo menos é isso que deve pensar alguém com alguma definição mais imediata de transcendência. Cumpre notar que nem Scruton e tampouco Peterson são adeptos praticantes da religião. Scruton tem uma vinculação nacional e institucional com a igreja anglicana – hoje um poço de progressismo. Peterson afirma em seus debates sobre religião que “não acredita em Deus, mas leva a vida como se ele existisse” – o que faz os ateus militantes imediatamente jogá-lo no colo dos conservadores religiosos. A confusão com Peterson se dá porque ele enxerga valor, verdade e sentido no legado literário das grandes religiões, há Verdade (transcendência?) nos textos sagrados e isso é uma heresia não-permitida para os ateus cientificistas, que por corolário de suas crenças precisam tratar qualquer texto religioso como contos de fadas nocivos para crianças crescidinhas.

Em tempos de ascensão do conservadorismo, especialmente nas jurássicas terras e mentes brasileiras, é bom ver um pouco de legítima diversidade por aí. Conservadorismo, na boca de esquerdistas, significa “fundamentalismo” religioso, seja à moda de uma TFP católica ou do neopentecostalismo evangélico. Portanto, é bom ver que há mais coisas no mundo civilizado das ideias do que pressupõe o vão “progressismo” das classes falantes brasileiras.

O que é o transcendente?

Peterson e Scruton gastam alguns bons pares de minutos definindo o transcendente. Scruton chama a atenção para a conotação negativa que circunda a palavra devido a certa influência kantiana. Transcendente estaria associado a conhecimento inacessível, pois estaria para além dos limites do pensamento em geral e da razão em especial (baboseira irracional, segundo materialistas). O próprio Kant não nos deixa esquecer que, apesar da incapacidade do aparato cognitivo humano de conhecer o transcendente, tratar dele é uma atividade natural da razão, bem como o desejo de obter conhecimento acerca.

Não se deve confundir transcendente com transcendental, especialmente em Kant. Transcendente é o que está para além da realidade imanente, são os objetos da metafísica clássica (Deus, alma imaterial etc.), aquilo que está além da realidade material imediata. Transcendental é, para Kant, aquilo que pode ser legitimamente conhecido a partir do emprego devido das faculdades da razão – intuição, imaginação, entendimento – com o uso de certas categorias (por isso o transcendente é racionalmente incognoscível para Kant, pois são objetos que não se enquadram nas categorias à disposição do conhecimento humano).

Segundo Peterson e Scruton, o transcendente se refere a todos aqueles momentos em que ocorrem aberturas para momentos que não se esgotam pelo seu simples aspecto empírico, sendo as artes (música e literatura em especial) os campos por excelência desse tipo de abertura (além, evidentemente, das próprias experiências místicas – sendo as artes o campo “laico” de abertura para o transcendente).

Niilismo e o poder foucaultiano

No decorrer da conversa, traz-se à baila o tópico da relação entre o niilismo contemporâneo e o sumiço do elemento transcendente entre as pessoas. E uma possível relação com a teoria foucaultiana do poder.

Se tudo se reduz a relações de poder (e em certo sentido realmente se reduzem, todas as nossas ações dependem de termos o poder de realizá-las, o que torna a teoria de Foucault uma platitude elementar), literalmente tudo, então não há espaço para qualquer elemento transcendente da realidade. O que muitos interpretam como vislumbres do transcendente seriam apenas confirmações de relações de poder (a religião, afinal, é o “ópio do povo”).

Scruton chama a atenção para certa “vontade de acreditar” nessa hipótese, para explicar sua popularidade. Provavelmente porque ela serve de modificação ad hoc perfeita para explicar qualquer coisa. Por que minha vida vai mal? Porque há relações de poder conspirando para isso. E também porque ela legitima a busca desmedida pelo poder, na forma de contraponto justo às relações de poder que supostamente explicam minha condição imposta pelos meus algozes mais poderosos.

Peterson não deixa escapar que a teoria de Foucault nada mais é que marxismo reciclado. Não haveria relação hierárquica de poder apenas entre patrão e empregado, mas exatamente em todas as relações humanas da nossa sociedade. E aí entra seu próprio estofo explicativo contra essa forma de marxismo cultural: as relações hierárquicas que construíram a civilização ocidental não se baseiam em poder, mas em competência. Quando contratamos um encanador para resolver problemas com os canos de nossa casa, fazemos nossa escolha baseados na competência, na habilidade de prestar o serviço necessário ao melhor e mais justo preço possível, de forma que um exerça a mesma quantidade de “poder” sobre o outro, tornando o elemento do poder nulo na equação. A ideia de que a civilização mais livre, próspera e capaz de proporcionar bem-estar ao maior número de pessoas se baseia em poder é apenas a uma teoria da conspiração chique e socialmente aceita (pois marxista).

Se tudo que existe é uma classe de poderosos nos obrigando a trabalhar como loucos num emprego que você despreza para que você tenha dinheiro para comprar porcarias que você não quer e se somos parafusos dessas engrenagens de poder, sem chances de se rebelar (as obras de Foucault são frutos de relações de poder?), fechados a qualquer abertura para o transcendente, que provavelmente nem existe, de fato, que resta senão o niilismo?

Soma zero?

Da ideia que tudo é poder, só podemos depreender que a vida é um grande jogo de soma zero. Para eu exercer poder, preciso retirar poder de alguém ou que esse alguém tenha menos poder que eu (poder que em algum momento fora tomado). Visto dessa maneira, como chamaram a atenção na conversa Peterson e Scruton, parece ficar mais fácil ver o problema dessa visão de mundo.

O livre mercado (talvez não o capitalismo, mas o livre mercado) é o exemplo perfeito de jogo ganha-ganha. Na clássica metáfora do açougueiro, todos ganham. Quem quer satisfazer seu desejo de consumir carne exerce seu poder de se dirigir até algum açougue, comprar o corte que melhor lhe aprouver a fome e o bolso e sair feliz, o mesmo para o açougueiro, que quer prestar o serviço de corte e disponibilidade de carnes, habilidade que está em seu poder, e sai ganhando remuneração da relação. Quem chamou a atenção para esse exemplo mais evidente foi Scruton.

Peterson usou a amizade como exemplo: que são amigos senão pessoas que você valoriza em alta conta – e eles pessoas que valorizam você – e essa relação mútua é benéfica para todos os lados? Com uma amizade verdadeiramente saudável todos ganham, portanto a vida não é um jogo de soma zero.

Literatura e transcendente

Tanto Peterson como Scruton, apesar de psicólogo e filósofo, têm uma ligação profunda com as artes literárias. Peterson reserva uma importância generosa para o registro escrito das principais tradições religiosas do mundo. Scruton trata abundantemente do tema e também escreve literatura.

Peterson descreve a literatura, especialmente o romance, como um “conjunto de vidas”. Quando lemos um personagem clássico, não é o relato ficcional (ou “falso”, para o materialista rasteiro) de uma vida, mas a conjunção de diversas vidas num personagem só. É daí que vem uma das principais “funções” da literatura: educar a imaginação para situações gerais universais, isto é, humanas. Aquilo que Edmund Burke chamava de “imaginação moral” e que é tão bem feito pelos clássicos (ou pelos contos de fada para crianças).

Em tempos de excessiva divisão e estratificação social, estimuladas pelo liberalismo identitário, não seria hora de retomarmos a definição de cultura? Se por cultura entendermos o cultivo do que de melhor produz uma sociedade, a literatura está plenamente inclusa nisso. Se os clássicos da literatura ocidental são capazes de nos oferecer situações universais que dão abertura para o transcendente, não estaria aí toda a base comum para cimentar todas as divisões e os mais diversos estratos? Scruton e Peterson concordam que sim. O que a pós-modernidade reduziu ao conflito de poderes e interesses precisa e deve retomar a sua função normal e legítima.

Como exemplo de tudo isso o mediador da conversa cita o último romance de Scruton, Souls in the Twilight, que ainda não li, mas que versa sobre o indivíduo capaz de ter esperança em tempos de desespero. Na mesma esteira, Peterson cita um de seus preferidos, Arquipélago Gulag, de Alexander Soljenítsin, que trata não apenas dos horrores dos gulags, os campos de concentração soviéticos (com quem nazistas tomaram algumas lições para implementar os seus próprios), mas de pessoas que sobrevivem com sanidade psicológica a esses horrores, que conseguiram achar algum sentido na existência dentro daquele contexto, encontrar esperança e sobreviver. Não posso deixar de citar, nesse caso eu mesmo, Viktor Frankl, em seu Em Busca de Sentido, onde trata exatamente desse tema, não por perspectiva literária, mas de gente que encontrou sentido onde ele menos existia e conseguiu sobreviver ao maior dos horrores da humanidade. Qual a origem e o fundamento de tudo isso? O transcendente. Desnecessário dizer que a uma cultura que abandona o transcendente só resta o niilismo e a desesperança.

Gratidão e transcendente

Por fim, Peterson traz para a parte final da conversa um tópico que é de meu particular interesse e que consiste em um dos principais motivos por que me classifico como conservador. O psicólogo chega a se emocionar quando fala do quanto deveríamos ser gratos às gerações passadas, muitas vezes exclusivamente motivadas por sua crença e apreensão do transcendente, para tomarem as empreitadas que tomaram e construir a civilização da qual hoje usufruímos amplamente e que a maioria dos jovens universitários é ignorante e, por conseguinte, ingrata.

Nutro profundo desprezo pela arrogância revolucionária que deseja a supressão, aniquilamento ou subversão total da ordem, como se tudo que se fez até aqui fosse digno apenas de ser jogado fora. Como dizia Chesterton, “a tradição é a democracia dos mortos”. Tudo que fora produzido por gerações passadas é digno de nota e disso, tudo que seja bom, belo e verdadeiro é digno de preservação e deve ser objeto da nossa gratidão. O “diálogo” com os que já se foram é imprescindível para a cultivo da cultura e é, ele próprio, uma ponte com o transcendente.

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